(por George Marmelstein, em 01/03/2008)
"A prova de direito constitucional do último concurso para Procurador da República foi simplesmente hilária. Depois vou fazer um post só sobre ela.
Por enquanto, vou ficar só com uma questão: que diabo é efeito cliquet?
Numa versão bem primitiva do Curso, havia um tópico específo para o assunto (na verdade, para o princípio da vedação de retrocesso, que é a mesma coisa). Como ainda não estou muito seguro da existência desse princípio, preferi retirar do livro. Agora acho que vou colocar de novo. Eis como está redigido:
Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional
No julgamento da ADIn 1.946/DF, acima mencionado, no qual o STF entendeu que o direito ao salário maternidade seria uma cláusula pétrea, houve uma aplicação, ainda que não tão evidente, do chamado princípio do não-retrocesso.
Esse princípio, de acordo com Canotilho, significa que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios[1]. Assim, em tese, somente seria possível cogitar na revogação de direitos sociais se fossem criados mecanismos jurídicos capazes de mitigar os prejuízos decorrentes da sua supressão.
Acolhendo esse entendimento, o Tribunal Constitucional português já decidiu, no acórdão 39/84, que “a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social” [2].
Na França, a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (por ele chamado de “effet cliquet”) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantais com eficácia equivalente.
A idéia por detrás do princípio da proibição de retrocesso é fazer com que o Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de vida da população. Qualquer medida estatal que tenha por finalidade suprimir garantias essenciais já implementadas para a plena realização da dignidade humana deve ser vista com desconfiança e somente pode ser aceita se outros mecanismos mais eficazes para alcançar o mesmo desiderato forem adotados. Esse mandamento está implícito na Constituição brasileira e decorre, dentre outros, do artigo 3º, da CF/88, que incluiu a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária entre objetivos da República Federativa do Brasil, sendo inconstitucional qualquer comportamento estatal que vá em direção contrária a esses objetivos.
Alguns juristas defendem, com certa razão, que é extremamente difícil reconhecer com absoluta certeza o que é retrocesso e o que é avanço em matéria de direitos fundamentais. É que, muitas vezes, uma medida pode ser um retrocesso para um determinado direito fundamental, mas, ao mesmo tempo, pode contribuir para dar mais efetividade a outros valores igualmente importantes.
Assim, por exemplo, a revogação da lei de imprensa pode ser vista como um grande avanço para a liberdade de expressão. Por outro lado, os direitos de personalidade (honra, intimidade, privacidade etc.) podem ficar sem proteção, caso não sejam criados mecanismos alternativos equivalentes aos previstos na lei de imprensa. Sob a ótica dos direitos de personalidade, revogar a lei de imprensa viola a idéia de vedação de retrocesso. Qualquer avanço que for dado para favorecer a liberdade de expressão será necessariamente um retrocesso para a proteção dos direitos de personalidade e vice-versa. Levado às últimas conseqüências, o princípio da vedação de retrocesso seria capaz de gerar o indesejado efeito de paralisar qualquer mudança no âmbito dos direitos fundamentais.
Isso vale também para os direitos sociais. É que nem todos os benefícios assistenciais alcançam resultados positivos em longo prazo, já que geram uma situação indesejável de dependência entre os seus beneficiários em relação ao Estado.
Os programas de assistência social, embora possam ser permanentes e duradouros, devem ter sempre em mira a obtenção de resultados concretos e positivos. Quando isso não ocorre, nada impede a revogação do benefício. Assim, muitas vezes, pode ser necessário revogar determinados benefícios sociais já concedidos, caso se demonstre concretamente que eles não estão reduzindo as desigualdades sociais nem promovendo uma distribuição de renda, mas, pelo contrário, desestimulando a busca pelo emprego e premiando o ócio. Vale ressaltar que essa demonstração não pode ser meramente retórica. Ou seja, será preciso apresentar dados confiáveis que indiquem a ineficácia da medida social e as vantagens que a sua revogação trará.
Em síntese: o princípio do retrocesso social não deve ser visto como uma barreira instransponível para qualquer mudança no âmbito dos direitos fundamentais. O que ele exige é que a revogação de leis que regulamentem os direitos fundamentais seja justificada do ponto de vista do desenvolvimento humano. Viola o conteúdo material da Constituição Federal a adoção de medidas legislativas que não cumpram os objetivos do artigo 3º.
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