terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Teoria do adimplemento substancial e o direito processual civil

Editorial 65 (Freddie Didier)
07/07/2009



Um dos efeitos do princípio da boa-fé é limitar o exercício das situações jurídicas ativas. A vedação ao abuso do direito é uma dessas conseqüências. Há diversas modalidades de exercício inadmissível de situações jurídicas. Fala-se, por exemplo, em venire contra factum proprium, tu quoque, supressio etc.
Uma aplicação da vedação ao abuso do direito é a chamada teoria do adimplemento substancial, estabelecida por “Lord Mansfield em 1779, no caso Boone v. Eyre, isto é, em certos casos, se o contrato já foi adimplido substancialmente, não se permite a resolução, com a perda do que foi realizado pelo devedor, mas atribui-se um direito de indenização ao credor” .
Assim, o direito potestativo à resolução do negócio não pode ser exercido em qualquer hipótese de inadimplemento. Se o inadimplemento for mínimo (ou seja, se o déficit de adimplemento for insignificante, a ponto de considerar-se substancialmente adimplida a prestação), o direito à resolução converte-se em outra situação jurídica ativa (direito à indenização, p. ex.), de modo a garantir a permanência do negócio jurídico.
Mas não apenas a resolução do negócio pode ser impedida pela aplicação dessa teoria (repita-se: derivada da aplicação do princípio da boa-fé).  Pode-se, por exemplo, cogitar da extinção da exceção substancial de contrato não cumprido (outra situação jurídica ativa): a parte não poderia negar-se a cumprir a sua prestação, se a contraprestação tiver sido substancialmente adimplida.
No direito privado brasileiro, a teoria do adimplemento substancial vem sendo adotada a partir da aplicação da cláusula geral do abuso do direito (art. 187 do Código Civil) e da cláusula geral da boa-fé contratual (art. 422 do Código Civil).
O princípio da boa-fé vige também no direito processual. Uma de suas conseqüências é, também, a vedação ao abuso do direito no âmbito processual. É fácil perceber que o princípio da boa-fé é a fonte normativa da proibição do exercício inadmissível de posições jurídicas processuais, que podem ser reunidas sob a rubrica do “abuso do direito” processual (desrespeito à boa-fé objetiva).
Resta saber se a teoria do adimpleento substancial pode ser aplicada no âmbito do direito processual. Pensamos que sim.
O § 2º do art. 511 do CPC brasileiro determina que “a insuficiência no valor do preparo implicará deserção, se o recorrente, intimado, não vier a supri-lo no prazo de cinco dias”. Preparo insuficiente é preparo feito; preparo que não foi feito não pode ser adjetivado. Insuficiente é o preparo feito a menor, qualquer que seja o valor. Isto significa que a deserção, por insuficiência do preparo, é sanção de inadmissibilidade que somente pode ser aplicada após a intimação do recorrente para que proceda à complementação. O legislador atentou para seguinte circunstância: interposto o recurso e feito o preparo em valor menor do que o devido, a inadmissibilidade é sanção drástica demais; a invalidação do recurso, no caso, é um caso típico de exercício inadmissível de um poder jurídico processual. Mais consentânea com a boa-fé é a necessária intimação do recorrente para proceder ao complemento do valor devido. Protege-se, aqui, ainda que em outro contexto, situação semelhante àquela protegida pela teoria do adimplemento substancial. A inspiração e a preocupação da teoria do adimplemento substancial são as mesmas que motivaram o legislador a proceder à inclusão do § 2º no art. 511 do CPC brasileiro. O poder de invalidar (situação jurídica ativa) o recurso com preparo insuficiente é, aqui, limitado pela boa-fé. Tem-se aqui um exemplo de regra jurídica que aplica a mencionada teoria.
É possível, porém, aplicar essa teoria em situações atípicas, a partir de uma concretização do princípio da boa-fé processual pelo órgão julgador.
Vejamos alguns exemplos, que, não obstante sem exaurir a casuística, podem iluminar a identificação de outras situações semelhantes.
Sabe-se que a afirmação do inadimplemento é um dos pressupostos para a instauração do procedimento executivo (art. 580 do CPC). Constatado o inadimplemento mínimo, pode o órgão jurisdicional recusar a tomada de medidas executivas mais drásticas, como a busca e apreensão do bem, por exemplo. Neste sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, que, em execução de contrato de alienação fiduciária em garantia, entendeu correta a decisão judicial que se recusou a determinar a busca e apreensão liminar do bem alienado, tendo em vista a insignificância do inadimplemento.
Em sentido semelhante, já se impediu a decretação de falência, em razão da pequena monta da dívida (STJ, 4a T., REsp n. 469.577/SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 25.03.2003, publicado no DJ  de 05.05.2003, p. 310). O entendimento jurisprudencial repercutiu na nova lei de falências (art. 94, I, Lei n. 11.101/2005).
O inciso II do § 1º do art. 694 do CPC brasileiro determina que a arrematação do bem penhorado será resolvida, se não for pago o preço ou se não for prestada a caução. A resolução da arrematação não pode ocorrer se o inadimplemento for mínimo. Isso não quer dizer que haverá prejuízo ao exeqüente, que não receberia integralmente da arrematação, ou ao executado, que teria seu bem expropriado por um valor menor do que o devido. Continuará o arrematante obrigado a exibir o preço ou prestar caução, que poderá ser demandado para tanto, inclusive com a incidência de multa (fixada pelo juiz) e juros sobre a parcela não adimplida; mas, sendo mínimo o inadimplemento, não é aceitável resolver a alienação judicial.
Certamente há outras situações em que essa teoria pode ser aplicada ao processo. Este ensaio tem o propósito apenas de despertar o estudioso e o aplicador do Direito para esta possibilidade.

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