terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Artigo 71 da Lei 8666/93 e a terceirização de atividade essencial do Estado


(30/11/2010 - 16:01)
Por Luciano Augusto de Toledo Coelho (*)

Por votação majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, na última quarta-feira (24/12), a constitucionalidade do artigo 71, parágrafo 1º, da Lei 8.666, de 1993, a chamada lei de licitações. O dispositivo prevê que a inadimplência de contratado pelo Poder Público em relação a encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem pode onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. A decisão é preocupante.

Em face de modernas teorias de gestão, as quais exigem maior agilidade nos serviços públicos, tem sido prática dos entes públicos terceirizarem as atividades em áreas essenciais como saúde e educação, ora com objetivos de melhorar o serviço, ora como forma de simplesmente conseguir prestar o serviço, eis que os limites orçamentários e legais, principalmente em pequenos municípios, muitas vezes com orçamentos já comprometidos, dificultam sobremaneira o exercício da administração.

 A constituição federal, em seu artigo 205, atribui a educação a um dever do estado e no artigo 196 dá o mesmo tratamento para a saúde, atribuindo-lhes relevância fundamental. Embora autorize, é verdade, que tais atividades sejam realizadas por terceiros, tal direcionamento é supletivo, impõe deveres e contém imensos limites ao ente que terceiriza. O maior desses limites é o direito do trabalhador empregado da empresa terceirizada. O trabalho é um dos grandes vetores constitucionais, ante os direitos do trabalhador elencados expressamente na carta constitucional, elevados a garantias fundamentais.

 Tais direitos não podem ser aviltados por procedimentos administrativos que, embora com os objetivos de agilidade e melhora no serviço, precarizam salários, garantias e condições de trabalho daqueles que prestam serviços em áreas essenciais. O reflexo desse processo atinge toda a população e tem consequências que acabam sendo suportadas por toda a sociedade mais cedo ou mais tarde.

Não é sem razão que o Tribunal Superior do Trabalho já de longa data protege os direitos dos trabalhadores terceirizados pela administração pública, com o entendimento preconizado na Súmula 331, estabelecendo a responsabilidade subsidiária do ente público. Em nosso sentir, o artigo 71, da Lei 8666/93, estabelece posição não recepcionada pelo ordenamento jurídico analisado de forma sistemática, na medida em que licitações sem garantias e a falha na fiscalização do correto pagamento aos trabalhadores violam os artigos 186 do Código Civil de 2002, 8º, 9º e 444 da CLT. Na medida, ainda, que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho (artigo 170 da CF), acrescendo-se ainda um princípio de justiça contratual (artigo 421 do CC/2002) que se manifesta na boa fé objetiva (artigo 422 do CC/2002), inviável desproteger o trabalhador quando qualquer parcela alimentar não lhe seja paga corretamente. 

Não foi, assim, intenção do legislador deixar o trabalhador à míngua em casos de responsabilidade do tomador do serviço. Portanto, o artigo 5o, II, da Constituição Federal e o artigo 1o, IV referente ao princípio da dignidade da pessoa humana, terminam por  afastar, cabalmente, qualquer tentativa de interpretação no sentido de que o ente público não teria responsabilidade pela terceirização de atividades, máxime aquelas envolvendo dever fundamental do Estado.

Se por um lado a terceirização, a privatização ou as parcerias através de organizações sociais podem trazer a agilidade tão necessária aos serviços públicos em um país ainda carente de infra-estrutura e de qualidade de serviços essenciais, por outro, não podem ser razão de precarização de direitos trabalhistas e diminuição das garantias de recebimento de créditos, originando demandas em massa, todas responsabilizando os entes públicos da administração direta ou indireta pelo não pagamento de parcelas salariais das empresas terceirizadas.

A não responsabilização da União e demais entes públicos, a médio prazo, poderá acarretar centenas de ações trabalhistas inadimplidas, o que contraria as próprias metas do CNJ no sentido de equacionamento das execuções, e com reflexos sociais gravosos na medida em que milhares de trabalhadores poderão não receber seus créditos, trazendo desprestígio e descrédito para a justiça do trabalho.

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(*) Juiz do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC-PR. Coordenador de Cursos da Escola dos Magistrados do Trabalho do Paraná – Ematra. 
Fonte: Sítio da ANAMATRA na internet <http://ww1.anamatra.org.br/>



COMENTÁRIO: Numa análise superficial, me parece que o STF pretendeu declarar que a responsabilidade da Administração Pública frente aos seus prestadores de serviço terceirizados não mais será imposta de forma objetiva, tal como vinha ocorrendo, fundamentada no art. 37, § 6º, da CF/88.

Como deixaram claro alguns ministros do STF, e cito o Min. Carlos Ayres Britto, o TST continuará autorizado a aplicar o comando de sua Súmula 331, devendo, com isso analisar o grau de culpa da Administração Pública.

Assim, sugere-se que o STF quis o seguinte: responsabilidade objetiva não é; avaliem o grau de culpa!

Se assim o for, o caminho está na própria Lei nº 8.666/93, pois em seu art. 58, III, está prevista a prerrogativa da Administração Pública para fiscalização dos contratos administrativos. Em outras palavras, este artigo impõe à Administração as responsabilidades 'in eligendo' e 'in vigilando'. Descumprida uma dada obrigação contratual trabalhista de terceirizados pela Administração, caberá a esta provar que não incorreu com culpa 'in eligendo' ou 'in vigilando'.

Menciono que caberá à Administração Pública esse ônus probatório, pois sustento que é a própria Administração que possui aptidão para essa modalidade de prova. Ainda, pode-se cogitar da tese de Mauro Schiavi de responsabilidade civil com culpa presumida, que leva ao mesmo resultado de determinar que a Administração faça a prova de que agiu de forma diligente com relação à sua prerrogativa inserta no art. 58, III, da Lei nº 8.666/93.

É cabível, também, sustentar a responsabilidade objetiva da Administração Pública com base no direito contratual do CC/2002 (arts. 421, 422). Ou, ainda, com base no art. 942, 'caput', do CC/2002, para sustentar a solidariedade pela reparação do dano causado ao trabalhador.

Há muitos caminhos a serem trilhados nessa temática, mesmo após a decisão do STF na ADC que declarou a constitucionalidade do art. 71 da Lei nº 8.666/93, especialmente porque o STF nada mais fez do que declarar que a responsabilidade da Administração Pública nos contratos públicos não é objetiva pela Lei de Licitações.

Responsabilidade contratual objetiva pelo CC/2002 ou verificação de culpa 'in eligendo' e 'in vigilando' da Administração pela Lei nº 8.666/93, ambos os caminhos levam a um resultado que garanta o mínimo existencial do trabalhador e que não precarize ainda mais as relações de trabalho neste país.  




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