CONTRATOS DE ATIVIDADE E CONTRATOS DE TRABALHO
Uma distinção relevante, mas raramente considerada.
LUCIANO MARTINEZ CARREIRO
Sendo certa a máxima segundo a qual coisas diferentes devem receber nomes diferentes é de fundamental importância jurídica a distinção entre “contratos de trabalho” e “contratos de atividade em sentido estrito”. Apesar disto, a doutrina e a jurisprudência têm desdenhado tal dessemelhança e têm tratado sob o mesmo nome jurídico os institutos ora analisados. A diferença entre “trabalho” e “atividade em sentido estrito” não é meramente acadêmica, porque traz consigo importantes reflexos práticos no âmbito trabalhista e previdenciário, conforme se poderá perceber.
A atividade é entendida como um gênero que comporta duas espécies: o trabalho e a atividade em sentido estrito. O que distingue as referidas espécies substancialmente é a meta. Enquanto o “trabalho”, indispensavelmente remunerado, tem por escopo o sustento próprio e, se for o caso, familiar do trabalhador, a forma identificada como “atividade em sentido estrito”, prestada, em regra, sem qualquer onerosidade ou mediante uma contraprestação meramente simbólica, tem objetivos diferentes, ora relacionados com o intento de aperfeiçoamento, ora associados a ações meramente solidárias.
O vocábulo trabalho estará continuamente associado à idéia de contraprestação pecuniária porque é entendido como um valor social que dignifica e que dá honradez à pessoa humana. Tal acontece porque, conforme antecipado, a remuneração dele decorrente visa ao sustento do trabalhador e, se for o caso, de sua família. Sem a contraprestação pecuniária o trabalho não alcançaria o seu objetivo social. Deste modo, pode-se concluir que, havendo necessidade de sustento próprio e/ou familiar, existirá trabalho e que, existindo trabalho, terá de ser atribuída uma contraprestação por força dele.
Nas atividades em sentido estrito os objetivos não são coincidentes com os do trabalho. Normalmente os contratos de atividade em sentido estrito miram metas diferenciadas, que não necessariamente são satisfeitas por contraprestação pecuniária. Vejam-se os exemplos dos contratos de estágio e de prestação de serviço voluntário, os quais, ao invés do sustento próprio e familiar, visam, respectivamente, “ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular” (§ 2º do art. 1º da Lei 11.788/2008) e à satisfação pessoal decorrente da prática do altruísmo nos campos “cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade” (art. 1º da Lei 9.608/1998).
O estagiário não é um “trabalhador” no sentido jurídico da palavra (conquanto muito se esforce para cumprir bem seus objetivos). Ele, em verdade, está sendo preparado para o “trabalho”, mas, enquanto este momento não chega, ele é simplesmente “exercente de atividade em sentido estrito”. Por não ser juridicamente um trabalhador, o estagiário não tem jornada de trabalho, mas sim “jornada de atividade” (vide art. 10, da mencionada Lei 11.788/2008); não tem férias, mas sim “recesso” (vide art. 13); não é segurado obrigatório, mas apenas, se assim quiser, “seguro facultativo” (§ 2º do art. 12). Do mesmo modo acontece com o prestador de serviço voluntário. Ele não é juridicamente um trabalhador, sendo uma verdadeira atecnia falar-se em “trabalho voluntário”. Sendo “trabalho” não poderia ser outorgado sem contraprestação. Neste particular, é importante assinalar que em nenhum momento o legislador utilizou a palavra “trabalho” na Lei 9.608/98, mas, unicamente, “serviço”.
A utilidade das distinções entre “trabalho” e “atividade em sentido estrito” não termina por aí. Vejam-se, a título exemplificativo, as vedações contidas no art. 7º, XXXIII, do texto constitucional. Elas dizem respeito ao “trabalho”, e não às “atividades em sentido estrito”. Se esta limitação estivesse relacionada indistintamente a ambos os institutos, chegaríamos à conclusão de que não existiria qualquer possibilidade de atuação de atores, cantores, modelos e atletas mirins. Todas as atividades realizadas em torno destes sujeitos seriam ilícitas e o sistema jurídico apenas toleraria uma ilegalidade. Pois bem. Admitindo-se a tese segundo a qual os atores, cantores, modelos e atletas mirins realizam “atividades em sentido estrito”, e não trabalho chegar-se-ia à conclusão de suas atuações não visam (ou não deveriam visar) ao seu sustento próprio ou familiar. As atuações destes sujeitos normalmente têm o objetivo claro – pelo menos o visível – de formar, de incentivar e de aprimorar as qualidades artísticas
dentro dos limites do desenvolvimento físico, psíquico, moral e social do infante/adolescente.
A atividade deve servir ao menor, e não o menor servir à atividade, sob pena de descaracterização dos desígnios ora expendidos. O infante/adolescente pode, entretanto, servir à atividade e, conseqüentemente, ao interesse público na medida em que sua participação chama à atenção, nas representações teatrais, televisivas, cinematográficas, atividades fotográficas ou de qualquer outro meio visual, para problemas sociais graves. Enfim, é do interesse público a discussão, notadamente por meio das citadas representações artísticas, de assuntos que envolvam negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão de menores, violência infanto-juvenil e, até mesmo, a educação doméstica dada pelos pais aos filhos. Como os menores de dezesseis anos (salvo na condição de aprendiz, a partir de
quatorze anos) não podem trabalhar, caberá ao Juiz da Infância e da Juventude analisar situações correlatas a estas atividades em sentido estrito e autorizar, se for o caso, a sua execução. Perceba-se que, a rigor, esta autorização não cabe ao Juiz do Trabalho porque, nos termos do art. 114, I, do texto fundamental, a ele cabe processar e julgar apenas “as ações oriundas da relação de trabalho”, não estando esta situação inserida no conceito de relação de trabalho.
Acrescente-se, entretanto, que a atuação dos modelos, atores, cantores ou desportistas mirins passará a ser entendida como trabalho, atraindo a competência da Justiça Laboral, se eles estiverem, efetivamente, trabalhando, ou seja, realizando a ocupação como algo indispensável à sua própria subsistência ou à de seus pais ou tutores.
Mais: no âmbito previdenciário as diferenças entre “trabalho” e “atividade em sentido estrito” são essenciais para distinguir segurados obrigatórios e segurados facultativos. Afirma-se isto porque aqueles que trabalham, ou seja, aqueles que exercem atividade remunerada com o propósito de garantir o sustento próprio ou familiar são, independentemente de sua vontade, automaticamente filiados aos regimes previdenciários na condição de segurados obrigatórios. O adjetivo “obrigatório” não deixa dúvidas quanto à ausência de alternativa ao trabalhador; ele é imperativamente inserido no regime previdenciário. Por outro lado, aqueles que, embora tendo idade para o trabalho, não realizam qualquer atividade remunerada capaz de lhes garantir o sustento próprio ou familiar, seja porque nada querem ou podem fazer, são categorizados como segurados facultativos. O adjetivo “facultativo” também não deixa espaço para dúvidas: aquele que poderia estar trabalhando, mas não está, desde que deseje, pode ingressar no regime geral da previdência social. É justamente neste âmbito que ingressam estagiários, prestadores de serviço voluntário e donas de casas.
Vê-se, assim, que as distinções aqui apresentadas, conquanto relevantes, não são estimadas pela doutrina e pela jurisprudência.
Fonte: Sítio da Academia Nacional de Direito do Trabalho - ANDT na internet.
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