A Lei 8.429 de 1992, conhecida com Lei de Improbidade Administrativa (LIA), está prestes a completar 20 anos de vigência, mas ainda gera muitas discussões na justiça. É enorme a quantidade de processos que contestam questões básicas, como a classificação de um ato como improbidade e quem responde por esse tipo de conduta. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar processos discutindo dispositivos da LIA em 1996 e, desde então, foram proferidas mais de 8.700 decisões, entre monocráticas e colegiadas.
Os artigos 9º, 10 e 11 da lei trazem extenso rol de atos ímprobos. O artigo 9º trata da improbidade administrativa que gera enriquecimento ilícito e o artigo 10 aborda a modalidade que causa dano ao erário, por ação ou omissão, dolosa ou culposa. Por fim, o artigo 11 traz os atos que violam os princípios da administração pública, como legalidade, moralidade e imparcialidade.
A jurisprudência do STJ consolidou a tese de que é indispensável a existência de dolo nas condutas descritas nos artigos 9º e 11 e ao menos de culpa nas hipóteses do artigo 10, nas quais o dano ao erário precisa ser comprovado. De acordo com o ministro Castro Meira, a conduta culposa ocorre quando o agente não pretende atingir o resultado danoso, mas atua com negligência, imprudência ou imperícia (REsp 1.127.143).
Nos casos do artigo 11, a Primeira Seção unificou a tese de que o elemento subjetivo necessário para caracterizar a improbidade é o dolo genérico, ou seja, a vontade de realizar ato que atente contra os princípios da administração pública. Assim, não é necessária a presença de dolo específico, com a comprovação da intenção do agente (REsp 951.389).
Improbidade x irregularidade
No julgamento do REsp 980.706, o ministro Luiz Fux (atualmente no Supremo Tribunal Federal) lembrou que, de acordo com a jurisprudência do STJ, o elemento subjetivo é essencial para a caracterização da improbidade administrativa, que está associada à noção de desonestidade, de má-fé do agente público. “Somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a sua configuração por ato culposo (artigo 10 da Lei 8.429)”, ressalvou o ministro.
São autores do recurso três pessoas condenadas em ação civil pública que apurou irregularidades na concessão de duas diárias de viagem, no valor total de R$ 750,00. Seguindo o voto de Fux, a Primeira Turma absolveu as pessoas responsáveis pela distribuição das diárias por considerar que não houve prova de má-fé ou acréscimo patrimonial, ocorrendo apenas mera irregularidade administrativa. Somente o beneficiário direto que recebeu as diárias para participar de evento ao qual não compareceu é que foi obrigado a ressarcir o dano aos cofres públicos e a pagar multa.
Um ato que isoladamente não configura improbidade administrativa, quando combinado com outros, pode caracterizar a conduta ilícita, conforme entendimento da Segunda Turma. A hipótese ocorreu com um prefeito que realizou licitação em modalidade inadequada, afinal vencida por empresa que tinha sua filha como sócia.
Segundo o ministro Mauro Campbell, relator do REsp 1.245.765, a participação da filha do prefeito em quadro societário de empresa vencedora de licitação, isoladamente, não constituiu ato de improbidade administrativa. A jurisprudência também não enquadra na LIA uma inadequação em licitação, por si só. “O que se observa são vários elementos que, soltos, de per si, não configurariam, em tese, improbidade administrativa, mas que, somados, formam um panorama configurador de desconsideração do princípio da legalidade e da moralidade administrativa, atraindo a incidência do artigo 11 da Lei 8.429”, afirmou Campbell.
Concurso público
Em outro processo sobre contratação irregular de pessoal sem concurso público, o STJ entendeu que era caso de improbidade administrativa. No REsp 1.005.801, um prefeito contestou sua condenação com base na LIA por ter permitido livremente a contratação sem concurso, e sem respaldo em qualquer lei. Segundo o acórdão, a conduta do prefeito contrariou os princípios da moralidade, da impessoalidade e da legalidade.
O relator, ministro Castro Meira, ressaltou trecho do acórdão recorrido apontando que a contratação não teve o objetivo de atender situação excepcional ou temporária para sanar necessidade emergencial. Foi admissão irregular para desempenho de cargo permanente. Todos os ministros da Segunda Turma entenderam que, ao permitir essa situação, o prefeito violou o artigo 11 da LIA.
Quem responde
O artigo 1º da Lei 8.429 afirma que a improbidade administrativa pode ser praticada por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de empresa incorporada ao patrimônio público, entre outras.
A dúvida restou quanto à aplicação da lei aos agentes políticos, que são o presidente da República, ministros de Estado, governadores, secretários, prefeitos, parlamentares e outros. O marco da jurisprudência do STJ é o julgamento da reclamação 2.790, ocorrido em dezembro de 2009.
Independência entre as esferas
De acordo com a jurisprudência do STJ, a LIA não deve ser aplicada para punir meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares. Ela tem o objetivo de resguardar os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, à imoralidade qualificada e à grave desonestidade funcional.
Mesmo nos casos de má-fé, nem sempre a LIA deve ser aplicada. Foi o que decidiu a Primeira Turma no julgamento do REsp 1.115.195. O Ministério Público queria que o transporte e ocultação de armas de fogo de uso restrito e sem registro por policiais civis fossem enquadrados como improbidade.
O relator, ministro Arnaldo Esteves Lima, explicou que, apesar da evidente violação ao princípio da legalidade, a conduta não é ato de improbidade. “Assim fosse, todo tipo penal praticado contra a administração pública, invariavelmente, acarretaria ofensa à probidade administrativa”, afirmou o ministro.
Aplicação de penas
As penas por improbidade administrativa estão definidas no artigo 12 da LIA: ressarcimento aos cofres públicos (se houver), perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios e incentivos fiscais ou creditícios.
De acordo com a jurisprudência do STJ, essas penas não são necessariamente aplicadas de forma cumulativa. Cabe ao magistrado dosar as sanções de acordo com a natureza, gravidade e conseqüências do ato ímprobo. É indispensável, sob pena de nulidade, a indicação das razões para a aplicação de cada uma delas, levando em consideração os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (REsp 658.389).
As duas Turmas especializadas em direito público já consolidaram a tese de que, uma vez caracterizado o prejuízo ao erário, o ressarcimento é obrigatório e não pode ser considerado propriamente uma sanção, mas conseqüência imediata e necessária do ato combatido.
Desta forma, o agente condenado por improbidade administrativa com base no artigo 10 (dano ao erário) deve, obrigatoriamente, ressarcir os cofres públicos exatamente na extensão do prejuízo causado e, concomitantemente, deve sofrer alguma das sanções previstas no artigo 12.
No julgamento do REsp 622.234, o ministro Mauro Campbell Marques explicou que, nos casos de improbidade administrativa, existem duas consequências de cunho pecuniário, que são a multa civil e o ressarcimento. “A primeira vai cumprir o papel de verdadeiramente sancionar o agente ímprobo, enquanto o segundo vai cumprir a missão de caucionar o rombo consumado em desfavor do erário”, esclareceu Marques.
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