quarta-feira, 16 de março de 2011

A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL E A SÚMULA VINCULANTE nº 25 (pelo Juiz do Trabalho Saint-Clair Lima e Silva)

Vêm das mãos do amigo e Juiz do Trabalho do TRT-15, Saint-Clair Lima e Silva, alguns fundamentos para a manutenção da regra de prisão do depositário infiel no Processo do Trabalho, mesmo após a edição da Súmula Vinculante nº 25 do STF. Acompanhem:


"Estabelece a Súmula Vinculante nº 25 do Supremo Tribunal Federal: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. 

A vedação sumular impõe-nos uma nova reflexão sobre os caminhos necessários à eficácia do cumprimento das decisões judiciais, em especial pela aparente colisão com as recentes alterações processuais gestadas ao ensejo do “Pacto do Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”. Esta foi a inequívoca proposição do histórico julgamento da Excelsa Corte que culminou com a uniformização vinculante, mas da qual resultou a quebra de constitucional e essencial garantia aos credores judiciais. 

Não é demais relembrar o origem daquele julgamento, circunspecto a legalidade da ação de depósito em contrato de alienação fiduciária, remanescente legal cruel único que ainda permitia a execução de obrigações sobre o próprio corpo do devedor inadimplente em relação contratual. Nada mais acertado, inclusive com o reconhecimento da supralegalidade do Pacto de San José da Costa Rica, para extirpar de nosso ordenamento infraconstitucional o ranço de uma época de ditadura. 

Todavia sua aparente extensão sobre as prisões advindas do descumprimento do depósito judicial (nunca o contratual) sem o devido aprofundamento sobre a origem deste último – ao contrário do que se fez sobre o depósito contratual - acaba por malferir tantas outras garantias constitucionais e fundamentais dos cidadãos, não sendo difícil listá-las. 

Mauro Schiavi, in Manual de Direito Processual do Trabalho, 3ª edição, pág 971, LTr, argumentou:

a) o art. 7, item 7 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos proíbe a prisão por dívidas. O depositário tem uma obrigação processual de natureza pública para entrega do bem penhorado que está sob sua guarda. Não se trata, no nosso sentir, de prisão por dívida, mas pelo não cumprimento de um encargo. 

b) a prisão do depositário infiel está prevista no artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, que consagra os direitos fundamentais do cidadão. Portanto, trata-se de cláusula prétrea da Constituição Federal, nos termos do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal. 

c) o caráter publicista da jurisdição, a efetividade processual, e a própria dignidade da Justiça justificam a medida extrema de prisão quando o depositário não entrega o bem que está sob sua guarda. 

d) os tratados internacionais sobre Direitos humanos ingressam no ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, não podendo contrariar as cláusulas pétreas da Constituição Federal. 

Além dos valiosos ensinamentos do jurista referendado, não há como deixar de se citar de J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, e suas conclusões sobre o princípio da reserva de constituição. Entende-se por reserva de constituição o conjunto de matérias que devem estar e não podem deixar de estar normativamente contempladas num texto constitucional, e em termos tendenciais, a idéia de reserva de constituição aponta para a existência de certos núcleos de matérias que, de acordo com o espírito do tempo e a consciência jurídica geral da comunidade, devem estar normativamente contempladas na lei proeminente dessa comunidade. Canotilho exemplifica expressamente o catálogo dos direitos, liberdades e do estatuto constitucional dos órgãos do poder político. 

A intelecção unívoca é a de que a depender da relevância dos temas estabelecem-se dimensões constitucionais essenciais, fundamentais, que especificam a estrutura geral do governo e do processo político, e impõe-se à própria Constituição de um povo a atribuição de regrar os direitos de liberdade e igualdade básicos de um cidadão. 

E constitui elemento básico de garantia de liberdade de um cidadão a regra do inciso LXVII do artigo 5º, não por acaso o artigo de inauguração do título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, que proíbe a prisão civil por dívida, “salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (o texto constitucional não contém grifo). 

Esta garantia exige comportamento negativo do depositário como forma de preservação do direito alheio, ou seja, impõe a cumpridor de compromisso judicial a postura de não dispor e não degradar o patrimônio reservado para a garantia de obrigação estampada em título judicial. A questão sobreleva-se na execução trabalhista quando contraposta a imprescindibilidade da satisfação do crédito de natureza alimentar com o menor dispêndio processual possível, forma de preservação de direito fundamental do trabalhador. A leitura simplista de ineficácia da exigência de comportamento negativo do depositário encerra severo golpe à garantia constitucional de acesso à justiça, bem delimitada por Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, vol. 5º, Malheiros Editores – São Paulo – 2005, pp. 134) ao destacar que “seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhe também um tratamento adequado. É preciso que as pretensões apresentadas aos juízes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo”. 

Tereza Aparecida Asta Gemignani, in Penhora sobre Salários – o Princípio da Legalidade e a Utilidade da Jurisdição, publicado no vol. 71 de agosto de 2007 da revista LTr, em excelente debate concluiu: 

“Erigido como fundamental pela Constituição Federal em vigor, o direito do trabalho, inclusive em sua vertente processual, se encontra cada vez mais permeável ao movimento de constitucionalização, que vem revolucionando a ciência jurídica contemporânea. Como bem ressalta Dinamarco, o `direito processual constitucional exterioriza-se mediante a tutela constitucional do processo´, consistente na observância de um conjunto de princípios e garantias postos pela Constituição, como a isonomia e o devido processo lega, entre outros”. 

E brilhantemente arrematou: 

“Neste passo, como reconhecer que está sendo observado o devido processo legal se a parte, vencedora numa ação, fica com uma sentença em mãos sem poder executá-la? Onde está o enforcement da jurisdição? Trocando em miúdos, para que serve a jurisdição, se é para terminar assim? Para que serve o estado democrático de direito, se os que devem continuam a dever, e os que têm a receber nunca recebem? 

Trata-se de reconhecer que as garantias constitucionais não são belas palavras, agradáveis de ouvir, mas bens da vida, cuja eficácia deve ser devidamente observada”. (grifo no original) 

Com efeito, se a norma constitucional impõe garantia ao credor e a alça a importância tal, a ponto de reservar-se a normatizar a conduta negativa do depositário, não há como se entender de modo diverso ou pela simples inoperância de seu contexto. Entre nós, portanto, o depositário infiel deve ser preso e a limitação da Súmula Vinculante lida como aplicável apenas ao depósito contratual ou voluntário. 

Assim, permanece hígida a obrigação do depositário e a sanção respectiva pela quebra do munus, pena de desrespeitar por completo as garantias fundamentais do credor. Talvez caiba a cogitação sobre a forma de execução da medida, já que a norma infraconstitucional (art. 652, CC/2002) recebeu derrogação da Corte Máxima Brasileira, todavia por tratar-se de prisão administrativa simples em estabelecimento prisional, desprovida de quaisquer benesses penais, a única condição a ser regulamentada é o seu prazo. E para isto basta a analogia a modelos por descumprimento de ordem judicial ou a eqüidade para o caso, úteis a fixar o prazo da prisão civil por descumprimento a obrigação judicial ao depósito". 



* Por Saint-Clair Lima e Silva, juiz do trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Professor titular da cadeira de Direito do Trabalho da Universidade Padre Anchieta. Professor do curso preparatório para carreiras jurídicas do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.

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