segunda-feira, 21 de março de 2011

Direito Adquirido (por Mauro Schiavi e Saint-Clair Lima e Silva)

Aqui vai um presentinho dos amigos Mauro Schiavi e Saint-Clair Lima e Silva para o Hierarquia Dinâmica!!
Importante este material para uma melhor compreensão sobre os temas da  aposentadoria e da desaposentação, pois o não exercício imediato de um direito adquirido pela pessoa não implica na conclusão de que não se tenha esse mesmo direito como adquirido! A legislação previdenciária dá tratamento diverso ao tema: lei posterior acaba interferindo sobremaneira no exercício de um direito adquirido...


                   DIREITO ADQUIRIDO

                   Introdução
          A garantia à tutela das situações consolidadas pelo tempo há muito repercute nos ordenamentos jurídicos contemporâneos e advém da necessidade de se proporcionar estabilidade e certeza para a proteção de direitos sedimentados na vida diária dos homens e dos povos, a atingir o ideário da segurança jurídica, que depende de um conjunto de normas aptas à manutenção do complexo de condições destinadas a salvaguardá-los do arbítrio.
Essa certeza é a base da segurança, encontrando na igualdade de condições a sua ratio essendi, propiciando sua observância ao cidadão o conhecimento prévio das conseqüências de suas próprias ações, a par dos efeitos que a ordem jurídica atribui ao seu comportamento.
Ao debruçar-se sobre o tema Raul Machado Horta[1] dissertou que “a elaboração da idéia de direito adquirido vincula-se a permanência de facta praeterita, que a regra do Imperador Teodósio formulou no ano 440, em famoso enunciado romanístico, vedatório da revogação de facta praeterita pela lei”.
Com supedâneo nas condições preexistentes e sua subsunção à lei antiga ou nova, a precedência do tempo no domínio do Direito Privado atraiu a atenção dos civilistas para a proteção de interesses privados ainda quando, em se observando o curso histórico, desconhecia-se qualquer compilação da idéia material e documental da Constituição. A construção conceitual de direito adquirido impôs a fixação do princípio da imutabilidade e da irrevogabilidade da situação anterior por ato contrário e sucessivo capaz de desfazê-la com dano ou prejuízo ao seu titular, incorrendo a criação da regra técnica de defesa da posição vantajosa.
Criação do direito anterior, que o consolidou, o direito adquirido se antepunha ao direito novo e às mudanças decorrentes do direito novo, e a lei, como norma abstrata, passou a dispor não somente sobre a conformação das garantias obtidas sob os auspícios da regra pretérita, mas também sobre a irretroatividade dos novos textos como sistema protetivo ao direito adquirido, assegurando a permanência e a incompatibilidade entre o direito antigo e o novo direito legislativo.
Vicente Ráo[2] em erudito estudo dispôs que “a inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso do seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças
                   As Constituições Brasileiras de 1824 e de 1891 preocuparam-se desde logo a fulminar a utilização retroativa da lei e as posteriores, com exceção apenas da Carta de 1937, ressalvaram fórmulas técnicas explícitas da irretroatividade para resguardar a trilogia clássica (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada).

                   Conceito de direito adquirido e implicações
A dificuldade para a definição de qualquer conceito é conhecida e sobreleva-se quando direciona-se ao direito adquirido. Novamente o escorço de Vicente Ráo[3]: “Seja qual for a doutrina que se aceite, o que não sofre dúvida é não haverem os juristas, até hoje, encontrado uma fórmula única e geral, aplicável a todos os aspectos do conflito das leis no tempo. E por haver-se, afinal, verificado a impossibilidade da compreensão de toda a disciplina em uma só fórmula, em um só princípio, Roubier, em sua citada exposição de motivos do anteprojeto de reforma do Código Civil francês, procura apresentar tantos princípios, ou quando menos, tantas regras gerais, quantas se revelarem necessárias”.
Referência sempre mencionada no estudo da matéria, o italiano Gabba[4] lança a seguinte definição: “é adquirido todo direito que - a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo; e que - b) nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”.
É um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada e extingue a relação jurídica que o fundamentava. Se o direito subjetivo não foi exercido, advindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes.
Não é rara a afirmativa de que não há direito adquirido em face de lei de ordem pública ou de direito público. Mas Caio Mário da Silva Pereira[5] assinalou a idéia do direito adquirido, tal como consignada na Lei de Introdução ao Código Civil, e sua incidência tanto sobre o direito público quanto sobre o direito privado, definindo que a existência de um direito subjetivo, de ordem pública ou de ordem privada, advindo de fato idôneo a concretizá-lo sob a égide da lei vigente ao tempo em que ocorreu, e incorporado ao patrimônio individual, não pode a lei superveniente ofender.
O Supremo Tribunal Federal há muito assim se manifesta, servindo o aresto seguinte à hipótese:

Princípio constitucional da intangibilidade das situações definitivamente consolidadas. No sistema constitucional brasileiro, a eficácia retroativa das leis – (a) que é sempre excepcional, (b) que jamais se presume e (c) que deve necessariamente emanar de disposição legal expressa – não pode gerar lesão ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. A lei nova não pode reger os efeitos futuros gerados por contratos a ela anteriormente celebrados, sob pena de afetar a própria causa – ato ou fato ocorrido no passado – que lhes deu origem. Essa projeção retroativa da lei nova, mesmo tratando-se de retroatividade mínima, incide na vedação constitucional que protege a incolumidade do ato jurídico perfeito. A cláusula de salvaguarda do ato jurídico perfeito, inscrita na Constituição da República 5º XXXVI, aplica-se a qualquer lei editada pelo Poder Público, ainda que se trate de lei de ordem pública. Precedentes do STF. A possibilidade de intervenção do Estado o domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento consitucional brasileiro, notadamente os princípios – como aquele que tutela a intangibilidade do ato jurídico perfeito – que se revestem de um claro sentido de fundamentalidade. Motivos de ordem pública ou razões de Estado – que muita vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas que frustram a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua autoridade – não podem ser invocados para viabilizar o descumprimento da própria Constituição, que, em tema de atuação do Poder Público, impõe-lhe limites inultrapassáveis, como aquele que impede a edição de atos legislativos vulneradores da intangibilidade do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada. Doutrina e jurisprudência (STF, Ag 251533-6-SP, Ré. Min. Celso de Mello, v.u., j. 25.10.1999, DJU 23.11.1999, pp. 32/33).

No mais, cuidou o legislador ordinário pátrio em definir o direito adquirido junto à Lei de Introdução ao Código Civil  no § 2º, art. 6º: “Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
O respeito ao direito adquirido, por constar no rol do artigo 5º da Constituição da República, caracteriza-se como uma cláusula pétrea (artigo 64, §4º, IV). Também o Supremo Tribunal Federal[6] considera os direitos individuais como direitos humanos de primeira geração, modernamente denominados direitos “prima facie” e, portanto, intangíveis. Na frase de Pontes de Miranda, os direitos humanos constituem o “Núcleo Imodificável da Constituição”.
Acerca da eficácia das cláusulas pétreas, sustenta com propriedade Uadi Lammêgo Bulos[7]:

“Cumpre investigar a produção de efeito das cláusulas pétreas, que servem de parâmetro para sabermos o alcance da atividade reformadora.
Elas são aquelas que possuem uma supereficácia total, como é o caso dos incisos I a IV, infra. Daí não poderem usurpar os limites expresso e implícitos do poder constituinte secundário.
Logram eficácia total, pois contêm uma força paralisante de toda a legislação que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto. Daí serem insuscetíveis de reforma, e.g., arts. 1º, 2º, 5º, I à LXXVII, 14, 18, 34, VII, a e b, 46, p. 1º etc. Ultrapassá-las significa ferir a Constituição.
São, também, ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo. Tem efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, e logrando incidência imediata.
Possuem, noutro prisma, efeito negativo pela sua força paralisante, absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre ruptura na ordem jurídica para se instaurar outra”.

Em resumo, direito adquirido é aquele que, já integrante do patrimônio de seu titular, exerce-se a qualquer momento, não podendo lei posterior, que tenha disciplinado a matéria de modo diverso, causar-lhe prejuízo.


[1] HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional, p. 266-267.
[2] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos, v. 1, p. 428 (apud Celso Ribeiro Bastos).
[3] op. cit. p. 441.
[4] apud R. Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982, p. 50.
[5] PEREIRA, Caio Mario da Silva, Instituições de Direito Civil, vol. 1. p. 105
[6] “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais e indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade” (STF – Pleno – MS n. 22.164/SP – Rel. Min Celso de Mello, Diário da Justiça, Secção I, 17 nov 1995, p. 39.206.
[7] Bulos, Uadi Lammêgo. “Constituição Federal Anotada”, 6ª Edição, São Paulo, Saraiva, 849.

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