domingo, 6 de março de 2011

A boa-fé e o novo Código Civil

José Fernando Simão

(material repassado e grifado pelo amigo Fabio Vitale)
Não é de hoje que se ressalta a importância do tema referente à boa-fé e seus desdobramentos no direito civil.
Enquanto o Código Civil alemão de 1900 (famoso BGB - Bürgeliches Gesetzbuch), tratava da boa-fé em seu parágrafo 242 como uma cláusula geral, o Código Civil brasileiro de 1916 ignorou essa noção e opta por tratar da boa-fé de maneira específica, sempre vinculada a certos institutos (posse, casamento putativo).
Indaga-se: o tratamento da boa-fé como cláusula geral tem algum reflexo no sistema jurídico? A resposta é afirmativa e é sobre isso que passamos a discorrer.
A doutrina ensina que temos dois conceitos distintos de boa-fé com relação à sua natureza.
A boa-fé subjetiva é aquela ligada a uma avaliação individual e equivocada de dados da realidade. Significa que o sujeito tem ou não ciência de algo. trata-se de um estado de consciência. É chamada pelos alemães de boa-fé crença (Gutten Glauben).
A boa-fé subjetiva se opõe à má-fé e já estava disciplinada pelo Código Civil de 1916. Assim, é considerado possuidor de boa-fé para fins da indenização das benfeitorias, aquele possuidor que desconhecia os vícios da posse. Também, é considerado cônjuge de boa-fé para fins do casamento putativo aquele que desconhece o impedimento matrimonial apto a tornar o casamento contraído nulo ou anulável. A ciência do alienante quanto ao vício oculto do bem e o surgimento do dever de indenizar está ligada ao estado de consciência, e, portanto, à boa-fé subjetiva. Essas noções contidas no Código Civil de 1916 a respeito da boa-fé subjetiva são também reproduzidas no novo Código Civil.
Já a idéia de boa-fé objetiva é uma regra ética de conduta. Tem um caráter normativo e se relaciona com o dever de guardar fidelidade à palavra dada. É a boa-fé lealdade (Treu und Glauben). É a idéia de não defraudar a confiança ou abusar da confiança alheia. Não se opõe à má-fé e não tem relação com a ciência que o sujeito tem da realidade.
A boa-fé objetiva vem prevista no novo Código Civil como regra de interpretação (artigo 113) e com relação aos contratos (artigo 422).
Entretanto, não podemos dizer que apenas com a promulgação do novo Código Civil, a boa-fé objetiva entra para o direito brasileiro. O Código de Defesa do Consumidor já traz em seu texto a idéia de boa-fé objetiva. Assim, a regra prevista no artigo 4º, inciso III daquele diploma cuida da boa-fé como norma de conduta.
Exatamente por isso, e aqui mencionamos apenas um simples desdobramento da boa-fé objetiva nas relações de consumo, é irrelevante a ciência ou não do fornecedor quanto ao vício do produto para fins de indenizar o consumidor. Outro desdobramento é o dever de informar do prestador de serviços com relação aos riscos que o consumidor assume ao contratá-lo.
Tem a boa-fé objetiva três funções: a ativa, a reativa e a interpretativa.
Conforme explicamos em nosso último artigo, a boa-fé objetiva segue o princípio pelo qual cada pessoa deve agir com retidão, probidade, lealdade e honestidade. Trata-se de norma ética de conduta e não se opõe à má-fé (que está ligada ao estado de consciência, à avaliação individual da realidade e, portanto, à boa-fé subjetiva).
Terminamos aquela artigo informando aos leitores que a boa-fé objetiva tem três funções distintas, conforme nos ensina ADALBERTO PASQUALOTTO: a ativa, a reativa e a interpretativa.
A função ativa da boa-fé se verifica nos deveres acessórios ou secundários, ou seja, nos deveres que não surgem da vontade das partes (a prestação principal é que surge da vontade das partes), mas decorrem da boa-fé em si. São os deveres de lealdade, cooperação, informação e segurança. Façamos uma breve digressão a respeito de cada um deles.
O dever de lealdade é aquele segundo o qual uma das partes não pode agir de maneira a causar prejuízo imotivado à outra parte. Trata-se em geral de uma abstenção que evita causar danos desnecessários ao outro contratante.
O dever de cooperação é aquele que exige das partes certas condutas necessárias para que o contrato atinja seu fim, sendo que, em certos casos essa conduta de uma das partes só beneficia a outra contratante. Exemplo disso se dá quando uma das partes necessita obter o Alvará para iniciar a obra em um contrato de empreitada.
O dever de informação é extremamente importante e já vinha disciplinado no Código de Defesa do Consumidor, com rígidas punições ao fornecedor que o descumprir (cf. regras sobre a publicidade enganosa). O contratante detentor de informações ignoradas ou imperfeitamente conhecidas pelo outro contratante deve fornecê-las, mesmo que tais informações lhe sejam prejudiciais. No caso dos prestadores de serviço como os médicos e advogados (que tem uma situação privilegiada em função de seus conhecimentos técnicos e profissionais) surge o dever de aconselhar.
O último dos deveres é o de segurança. Trata-se do dever de garantir a integridade dos bens e direitos do outro contratante, em situações contratuais que possam oferecer perigo. Nesse caso, podemos citar o dever de fornecer aos funcionários os Equipamentos de Proteção Individual para a prevenção de acidentes. Mesma hipótese se verifica no dever que tem o Shopping Center de colocar um aviso “Cuidado Perigo de Escorregar”, após lavar o assoalho.
Como se percebe, em certas situações, os deveres de conduta advém da própria lei (ex: Dever de informar o consumidor previsto no CDC) e em outras da relação contratual em si, mesmo que ausente previsão expressa. Independentemente da sua origem, todos tem por princípio a boa-fé objetiva e sua função ativa.
Outro desdobramento da função reativa é a responsabilidade dos contratantes antes da celebração do contrato (até a sua conclusão), em sua execução e mesmo após o seu término (art. 422 do novo Código Civil).
Essa responsabilidade não termina com o fim do contrato, pois então surge a responsabilidade decorrente da culpa post pactum finitum. Exemplo se dá no caso do consumidor que compra um sofá e a loja pontualmente entrega o bem na residência do comprador, mas no ato de entrega, estraga a pintura das paredes. A prestação do contrato foi cumprida (entrega do sofá) e extinto mas permanece a obrigação de reparar da empresa fornecedora (após o fim do pacto, post pactum finitum).
A Boa Fé e o Novo Código Civil - Parte III
José Fernando Simão
Após a digressão a respeito do conceito de boa-fé objetiva, em oposição à boa-fé subjetiva (artigo publicado em outubro de 2002), bem como a análise da função ativa da boa-fé subjetiva e os deveres anexos (artigo publicado em novembro de 2002), cabe, agora o debate a respeito da função reativa da boa-fé objetiva e seus desdobramentos.
A função reativa é a utilização da boa-fé objetiva como exceção, ou seja como defesa, em caso de ataque do outro contratante. Trata-se da possibilidade de defesa que a boa-fé objetiva possibilita em caso de ação judicial injustamente proposta por um dos contratantes. Nessa breve digressão a respeito do tema, analisaremos três aspectos da função reativa.
A primeira delas e uma das mais interessantes é a idéia de venire contra factum proprium. O venire parte da idéia de que as partes, em decorrência da confiança que permeia a relação jurídica, devem agir de maneira coerente, seguindo a sua linha de conduta, e, portanto, não podem contrariar repentinamente tal conduta, por meio de um ato posterior. Exatamente por isso o contratante não pode contrariar a sua própria atitude.
Dois exemplos aclaram a idéia do venire contra factum proprium. O primeiro deles ocorre no caso do locador de um imóvel que, todo mês, aceita receber o aluguel com 5 dias de atraso. Após meses, sem se opor a tal fato, resolve o locador mudar de conduta e passa a exigir a multa moratória do período. Ora, essa mudança repentina frusta a legítima expectativa do inquilino, já que durante meses o locador não se opôs (tolerou) o pagamento do aluguel com dias de atraso. O segundo exemplo vem do próprio Código Civil de 2002 que, em seu artigo 175 (cujo correspondente no Código Civil de 1916 era o artigo 151), determina que o contratante que voluntariamente iniciou a execução do negócio jurídico anulável, não pode mais invocar essa nulidade. O cumprimento voluntário do negócio anulável importa em extinção de todas as ações ou exceções que dispusesse o devedor, pois esse opta por seguir certa conduta e não pode, posteriormente, surpreender a outra parte com tal mudança.
A segunda função reativa da boa-fé objetiva é o dolo agit qui petit quod statim redditurus est. Trata-se de uma punição à parte que age com o interesse de molestar a parte contrária e, portanto, age como dolo ao pedir aquilo que deve ser restituído. Caso típico se dá na hipótese de o credor demandar por dívida já paga. Assim, determina o Código Civil que aquele que demanda por dívida já paga fica obrigado a pagar ao devedor o dobro do que houver cobrado (artigo 940 do Código Civil de 2002 e 1531 do Código Civil de 1916). É verdadeiro desdobramento do princípio do dolo agit, pois pune o credor que propõe demanda contra o devedor por puro espírito de emulação, já que nada mais tinha a receber.
A última das funções que cuidaremos nesse artigo é o tu quoque. A expressão ficou célebre pela frase de Júlio César ao ser assassinado nos idos de março: “Até tu, Brutus!” Assim o tu quoque é a idéia de que ninguém pode invocar normas jurídicas, após descumpri-las. Isso porque ninguém pode adquirir direitos de má-fé.
Um exemplo desse princípio é a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) que estava prevista no artigo 1092 do Código Civil de 1916 (476 do novo Código Civil). Se a parte não executou a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação. Como poderia o inadimplente exigir da outra parte o cumprimento da contraprestação se não prestou? Não poderá invocar a regra que descumpriu em seu benefício.
Assim, nos três artigos referentes à boa-fé objetiva, conseguimos trabalhar algumas noções do instituto e seus reflexos no novo Código Civil brasileiro. Obviamente, o tema não se esgota e para seu aprofundamento sugerimos a excelente obra da Professora Judith Martins-Costa (A boa-fé no Direito Privado da Editora Revista dos Tribunais) e o artigo de Adalberto Pasqualotto (A boa-fé nas obrigações civis, in Faculdade de Direito da PUCRS: Ensino Jurídico no Limiar do Novo Século, EDIPUCRS).

Comentário do Hierarquia Dinâmica:

Relação dos conceitos mencionados neste artigo com os mais conhecidos conceitos de boa-fé objetiva previstos no Código Civil de 2002:
  • FUNÇÃO INTERPRETATIVA - função interpretativa (art.113) ;
  • FUNÇÃO REATIVA (venire contra factum proprium, dolo agit qui petit quod statim redditurus est e tu quoque) - função de controle dos limites do exercício de um direito (art.187); e

  • FUNÇÃO ATIVA (lealdade, cooperação, informação e segurança) -função de integração do negócio jurídico (art. 421).

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