quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Responsabilidade civil objetiva do empregador

Abaixo um trecho do voto do Min. Vieira de Mello Filho no RR-1022400-33.2004.5.09.0015, acerca da responsabilidade civil objetiva do empregador em hipótese de acidente de trabalho. É uma verdadeira aula, completa, um roteiro de redação e auto-texto para sentença. 

 1.2 - ACIDENTE DE TRABALHO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA
                     A Corte Regional negou provimento ao recurso ordinário das reclamadas aos seguintes fundamentos, a fls. 827-832:
    Ab initio, oportuno mencionar as circunstâncias em que ocorreu o acidente de trabalho, conforme adequadamente exposto pelo Juízo a quo (fls. 675/679), onde se verificou que a equipe do Reclamante foi enviada, de forma incompleta (ausência de um encarregado), para executar serviços de "linha viva" no período noturno, em descumprimento às normas do regulamento da empresa, ocasião em que se constatou a ausência de corte, por parte de um empregado da Reclamada, de um dos cabos no mesmo comprimento dos demais, bem como o fato de que os trabalhadores foram informados, erroneamente, de que a linha estava desligada, elementos esses que acarretaram a ocorrência do acidente de trabalho que acometeu o Reclamante, impondo-lhe a amputação dos dois braços até a altura dos ombros e as conseqüências decorrentes desse evento danoso.
    Estabelecidos esses pressupostos fáticos, importante lembrar que os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, arrolados expressamente no art. 7° da Constituição Federal, constituem um conjunto mínimo de direitos assegurados à categoria profissional, objetivando a concretização da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (art. 1°, III e IV, CF), eis que a ordem econômica encontra-se fundada na valorização do trabalho humano, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, CF).
    O disposto no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade subjetiva do empregador nos acidentes de trabalho, não pode ser interpretado de forma isolada, por constituir uma garantia mínima do trabalhador, sem que se exclua a existência de outros direitos "que visem à melhoria de sua condição social" (art. 7º, caput, CF), havendo a possibilidade de serem criados, por meio de normas constitucionais, infraconstitucionais ou convencionais, outros direitos mais favoráveis aos trabalhadores, ampliando aquele patamar mínimo de direitos fundamentais.
    Dispõe o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, que, "sem obstar a aplicação de penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade", enquanto que o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, estabelece que "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
    As normas que protegem o meio ambiente, conceito no qual se inclui o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, CF), objetivam, em última análise, proteger a vida humana, considerado como bem essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, caput, CF), sendo direitos dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (art. 7º , XXII, CF), razão pela qual o disposto no inciso XXVIII do art. 7° da Constituição Federal deve ser interpretado em harmonia com o seu art. 225, § 3°, que assegura a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente, principalmente porque não há qualquer fundamento que justifique a criação de dificuldades para a reparação de prejuízos causados ao trabalhador em decorrência de dano ao meio ambiente.
    De acordo com os ensinamentos de Raimundo Simão de Melo, "a natureza potencialmente perigosa da atividade de risco é a peculiaridade que a diferencia das outras atividades para caracterizar o risco capaz de ocasionar acidentes e provocar prejuízos indenizáveis, com base na responsabilidade objetiva (CC, art. 927)", para concluir que "se no direito comum as dificuldades são grandes quanto à identificação das atividades de risco, no Direito do Trabalho tal não constitui novidade, por pelo menos duas razões. Já existem dois amplos campos de atividades consideradas de risco: a) as atividades insalubres (CLT, art. 189 e NR nº 15 da Portaria 3.214/77); e b) as atividades perigosas (CLT, art. 193 e NR nº 16 da Portaria 3.214/77). Também é considerada perigosa a atividade exercida em contato com eletricidade (Lei n.º 7.410/85 e Decreto n.º 92.530/86)-.
    Desse modo, ao contrário do que sustentado pelas Recorrentes, o fato do Reclamante perceber regularmente adicional de periculosidade evidencia a natureza perigosa da atividade desenvolvida, atraindo a incidência da responsabilidade objetiva do empregador em caso de acidente de trabalho (art. 927, parágrafo único, CC), sendo desnecessária qualquer discussão acerca de dolo ou culpa pelo evento danoso, bastando a comprovação do nexo causal e dos prejuízos sofridos pelo empregado acidentado.
    Não há qualquer incompatibilidade, portanto, entre o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, os arts. 7º, XXVIII, e 225, § 3º, da Constituição Federal, eis que os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores podem ser melhorados por outras normas jurídicas, máxime ao se considerar que a responsabilidade objetiva por acidente de trabalho direciona-se à preservação da vida humana do trabalhador, sendo do empregador os riscos da atividade econômica, e não do empregado, que se subordina ao poder de direção patronal de forma absoluta (art. 2º, CLT).
    Considerando que vigora no âmbito justrabalhista o princípio da norma mais favorável, resta afastada qualquer alegação de inconstitucionalidade do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que estabelece a responsabilidade objetiva do empregador que desenvolve atividades de risco, pois referido princípio permite eleger como regra prevalente, em uma dada situação de aparente conflito de regras, aquela que for mais favorável ao trabalhador, máxime em se tratando de normas de ordem pública que versam sobre proteção da saúde, da vida e da integridade física do trabalhador, quando houver violação decorrente de acidente de trabalho.
    Com razão o jurista Adib Pereira Netto Salim, ao indicar que "se o empregador desenvolve atividade econômica que traz o risco como inerente, responderá de forma objetiva, ante a adoção da teoria do risco-criado, em relação a todos os lesados, inclusive àqueles que sejam seus empregados. Não se poderia pensar que, em um acidente que atingisse diversas pessoas, dentro do exercício de uma atividade empresarial com risco inerente, a empresa respondesse objetivamente em relação a todos, à exceção dos seus empregados", sustentando que a responsabilidade objetiva do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, possui imediata aplicação "no âmbito trabalhista, naquelas atividades em que o trabalhador, por força de lei ou norma coletiva, seja beneficiário de algum adicional salarial em razão dos riscos da atividade, que ocorre com aqueles que recebem adicionais como insalubridade, periculosidade e risco portuário-.
    Inviável, portanto, a exclusão da responsabilidade objetiva das Reclamadas, restando prejudicada a análise dos tópicos do Recurso Ordinário voltados à discussão da ausência de culpa das Recorrentes, sendo suficiente, para o deslinde da controvérsia, a prova da causa e efeito entre o acidente e os danos experimentados pelo trabalhador, resultando no dever de indenização do empregador, quer tenha agido ou não culposamente.
                     No julgamento dos primeiros embargos de declaração, a Corte regional acrescentou, a fls. 872-874:
    Todos esses elementos fáticos, especificamente analisados pelo Juízo a quo (fls. 675/679), demonstram a inexistência de qualquer culpa stricto sensu por parte do Reclamante, não havendo que se falar em omissão no julgado, para fins de prequestionamento, uma vez que a interposição de eventual recurso por parte das Embargantes dará ensejo à apreciação de toda a matéria impugnada (art. 515, CPC), inclusive com a análise das questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a decisão recorrida não as tenha apreciado por inteiro (art. 515, § 1°, CPC).
    Ademais, impende destacar que o Juiz não está obrigado à análise de todos os argumentos levantados pelas partes, bastando que decida a lide de forma fundamentada (art. 93, IX, CF), indicando as razões de seu convencimento, podendo apreciar livremente a prova carreada aos autos, atendendo aos fatos e circunstâncias da causa, ainda que não alegados pelas partes (art. 130, CPC), em atendimento ao princípio da persuasão racional.
    A adoção da teoria da responsabilidade objetiva por acidente de trabalho em atividades de risco afasta induvidosamente qualquer discussão acerca da culpa do Reclamante, bastando que se configure o evento danoso, os prejuízos materiais, morais e estéticos acarretados ao trabalhador e o nexo causal entre esses elementos, tal como restou devidamente caracterizado na espécie, não havendo que se falar em omissão no julgado, principalmente ao se considerar que a apreciação fática da ausência de culpa do Reclamante restou expressamente analisada pelo ilustre Juízo a quo.
    De outro lado, conforme os fundamentos do acórdão embargado, as circunstâncias fáticas que envolveram o sinistro afastam qualquer culpa do trabalhador, que foi efetuar manutenção em "linha viva" sem o acompanhamento do encarregado, em período noturno e o mais grave, a comunicação equivocada que a rede elétrica havia sido desligada.
    A percepção de adicional de periculosidade, por sua vez, demonstra de forma irrefutável que o reclamante laborava em atividade eminentemente perigosa, atraindo a responsabilidade objetiva do empregador em caso de acidente de trabalho (art. 927, parágrafo único do CC), sendo, por isso mesmo, desnecessária qualquer debate em torno da existência de dolo ou culpa relativamente a atitude do empregador.
                     As reclamadas alegam que o empregador somente tem o dever de indenizar o empregado pelo acidente de trabalho quando agir com dolo ou culpa, o que não ocorreu no caso em questão. Aduzem que não se há de falar em responsabilidade objetiva pelo acidente laboral, ainda que as atividades desenvolvidas sejam de risco, no que tange aos eletricistas e operadores de subestação e usinas, não sendo aplicável o art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Invocam a aplicação do art. 7º, XXVIII, da Carta Política, o qual reputam violado. Argumentam que a norma hierarquicamente inferior se submete à norma superior. Sustentam, ainda, que não se aplica o art. 37, § 6°, da Carta Magna, pois tal dispositivo não trata de acidente de trabalho. Defendem que o fato de pagar adicional de periculosidade não contribui para o acolhimento da tese de responsabilidade objetiva, principalmente por ter restado comprovada, nos autos, a culpa do reclamante, no mínimo, concorrente, o que impõe atenuar a responsabilidade.
                     Com efeito, o sistema de responsabilidade civil vigente em determinado país deve refletir os avanços tecnológicos incidentes nas relações sociais, sob pena de se ter um ordenamento jurídico inapto a disciplinar as mencionadas relações e incapaz de concretizar os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República, em patente menosprezo à força normativa do diploma que representa a decisão política fundamental do povo brasileiro. Tal força normativa repercute nas relações entre particulares, pois não seria lógico que a autonomia da vontade pudesse se sobrepujar aos comandos de ordem pública emanados da Carta Magna. Por isso, atualmente se admite que os mencionados direitos e garantias ostentam eficácia jurídica horizontal direta.
                     Nessa senda, o Código de Defesa do Consumidor, atento à realidade de produção em massa inerente à sociedade industrial, instituiu o sistema de responsabilidade objetiva pelos defeitos existentes nos produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo (arts. 12 a 14 do CDC). Assim o fez porque o consumidor ostenta posição de hipossuficiência em relação ao fornecedor, pois este detém todas as informações inerentes aos produtos e serviços que comercializa, o que torna inviável à outra parte da avença provar os mencionados defeitos.
                     Além disso, não se pode ignorar que, por mais que o fornecedor se esmere na adoção de medidas destinadas a prevenir qualquer defeito, ele inevitavelmente ocorrerá, causando dano à esfera juridicamente protegida de outrem, que ficaria desprovido de tutela jurídica, caso tivesse de provar a existência de uma culpa que, de fato, não se verificou. Tal não pode ser tolerado por um Estado Democrático de Direito, cuja finalidade consiste em promover o bem-estar de todos (art. 3º, IV, da Carta Magna), por importar em distribuição desigualitária dos riscos oriundos de atividade que se afigura proveitosa para toda a sociedade.
                     Observando a evolução do instituto da responsabilidade civil, o legislador infraconstitucional, ao editar o Novo Código Civil, determinou, no art. 927, parágrafo único, do referido diploma legal, que será objetiva a responsabilidade do autor do dano se a atividade por ele, e em razão dele, normalmente desenvolvida lesar a esfera juridicamente protegida de outrem. Assim o fez, pois não é de difícil constatação que não só nas relações consumeristas existe a hipossuficiência que dá ensejo à tutela da outra parte contratual, razão pela qual deve haver uma regra geral no sistema jurídico brasileiro apta a suprir a carência do sistema de responsabilidade civil subjetiva, quando ela for ineficaz à tutela dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal.
                     Nessa senda, o art. 7º, caput, da Carta Magna, ao instituir os direitos dos trabalhadores de nossa nação, deixa expresso que aquele rol é o patamar civilizatório mínimo assegurado a todo aquele que disponibiliza a sua força de trabalho no mercado econômico, razão pela qual a regra inserta no inciso XXVIII do referido dispositivo constitucional não elide a incidência de outro sistema de responsabilidade civil mais favorável ao empregado, como o é a hipótese do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.
                     Resta, portanto, determinar a forma como o mencionado dispositivo incidirá nas relações laborais. Sabe-se que a atividade empresarial do empregador (que, em relação ao consumidor assume o papel de fornecedor) constitui a síntese de todas as tarefas desenvolvidas, dentro e fora do estabelecimento empresarial, por todos aqueles que a ele prestam serviços, seja de forma subordinada, ou não.
                     Tais pessoas encontram-se no meio da cadeia produtiva que liga o empregador ao consumidor de seus produtos e serviços, pois são elas que tornam concreta a finalidade empresarial de auferir lucros no mercado econômico. Ao fazê-lo, manuseiam os mesmos produtos e serviços disponibilizados ao consumidor (só que em fase anterior do processo que os torna aptos ao consumo), razão pela qual não se afigura razoável a elas não estender o mesmo sistema de responsabilidade civil objetiva, quando as tarefas por ela desenvolvidas (que constituem elemento da atividade empresarial) ocasionarem riscos inerentes às respectivas esferas juridicamente protegidas.
                     Entendimento contrário representa a própria negação ao valor social do trabalho consagrado como fundamento da República Federativa Brasileira (art. 1º, IV, da Carta Magna), por equiparar o trabalhador aos demais fatores de produção (coisa, portanto), o que não se coaduna com a dignidade inerente ao ser humano (art. 1º, III, da Carta Magna).
                     Em face disso, na hipótese dos autos, em que o empregado é eletricista, deve o disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil incidir, por estar o obreiro sujeito a riscos superiores aos inerentes à prestação subordinada de serviços pelos demais trabalhadores de nosso País.
                     Incólume o dispositivo invocado.
                     O segunto, terceiro, quarto e décimo primeiro arestos colacionados (fls. 912 e 914) não se prestam ao confronto de teses, por não trazerem a fonte oficial de publicação, nos termos da Súmula nº 337, I, do TST.
                     Os demais arestos trazidos no apelo revisional carecem da especificidade exigida pela Súmula nº 296 do TST, por não abordarem a tese adotada pelo Tribunal local, no sentido de que a responsabilidade objetiva decorre da natureza perigosa da atividade desenvolvida pelas reclamadas.
                     Não conheço.

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