Inicialmente é preciso deixar claro que o nosso Ordenamento Jurídico trabalha com duas espécies de boa-fé, uma de natureza subjetiva, que diz respeito a dados internos, psicológicos, elementos diretamente ligados ao sujeito (por exemplo, a ignorância da real situação jurídica), outra dita OBJETIVA, externa, relativa a um comportamento, um dever de conduta. A primeira pode ser dita “boa-fé estado”, a segunda “boa-fé princípio”.
Neste breve ensaio tratarei apenas da boa-fé objetiva, eis que nosso principal objetivo é delinear todas as suas figuraras, pois começaram a ser cobradas em provas de concurso.
Para um melhor entendimento da boa-fé objetiva é importante reavivar na memória que esta consiste em cláusula geral, motivo pelo qual remeto a leitura ao texto pertinente ao tema de sorte a maximizar o aprendizado.
A boa-fé objetiva, segundo pesquisa por mim realizada, apresentaria, pelo menos, onze figuras argumentativas, ou seja, tipos de argumentos recorrentes que geram sua aplicação prática. São elas:
I. venire contra factum proprium;
II. tu quoque;
III. exceptio doli, desdobrada em:
IV. exceptio doli generalis, e
V. exceptio doli specialis;
VI. inalegabilidade das nulidades formais;
VII. desequilíbrio no exercício jurídico;
VIII. supressio e surrectio;
IX. Cláusula de Estoppel, e
X. Duty to mitigate the loss
XI. Adimplemento substancial ou “substantial performance”
Antes de analisarmos uma a uma, devemos aclarar que na aplicação dessas figuras, não é necessário que se façam presentes todos os requisitos que as ensejam, desde que a situação casuística assim determine. Ademais, podemos verificar, ainda, mais de uma figura no mesmo caso, situação na qual o juiz as moldará conforme o seu livre convencimento (motivado). Por fim, também temos que lembrar que todas estas figuras argumentativas nascem da redação do art. 422 do Código Civil de 2002.
I. O venire contra factum proprium consiste na proibição de comportamentos contraditórios; verifica-se em situações nas quais uma pessoa, durante determinado período de tempo, se comporta de tal maneira que gera expectativas justificadas para outras pessoas que dependem deste seu comportamento, e em determinado momento, simplesmente, atua em sentido contrário à expectativa gerada pelo seu comportamento. Ressalta-se, que também é requisito para a configuração do venire o investimento da parte contrária na situação gerada pela expectativa ou comportamento anterior. Vale lembrar que esta figura não se confunde com o aforismo turpitudinem suam allegans non auditor, segundo o qual, ninguém pode alegar a própria torpeza. Enquanto o primeiro, como visto, tutela a confiança e as justas expectativas, o segundo objetiva reprimir a malicia e a má-fé.
Um exemplo emblemático foi o caso da empresa CICA que, por diversos anos comprava os tomates utilizados em seus produtos, de determinados agricultores, os quais dedicavam toda a sua produção para aquela empresa (tomates destinados, exclusivamente para fazer molhos). Em determinado ano, a empresa forneceu as sementes, incentivou o cultivo, mas quando da colheita não comprou os tomates. Como resultado, fora proibida judicialmente de realizar aquela conduta contraditória ao seu comportamento anterior.
II. O tu quoque, que em língua portuguesa significa “e tu também”, em alusão à frase de Júlio César dita a Brutus, consiste numa contradição segundo a qual, um dos sujeitos da relação obrigacional exige um comportamento em circunstâncias tais que ele mesmo deixou de cumprir. Tal figura visa evitar que um dos contraentes se beneficie da própria torpeza, beneficiando-se da norma que violou; visa-se a vedação de comportamentos que se pautam em dois pesos e duas medidas.
O tu quoque distingue-se do venire, pois não visa tutelar a continuidade de um comportamento, mas apenas a sua manutenção para preservar o equilíbrio contratual, o caráter sinalagmático das trocas.
Tal figura pode aparecer nos concursos com outras denominações, como turpitudinem suam allegans non auditur, ou ainda, equity must come with clean hands, ou ainda, princípio do sinalagma.
III. A exceptio doli generalis consiste numa figura argumentativa da boa-fé que visa obstar o exercício de pretensões dolosas dirigidas contra a outra parte contratante. A outra parte, agindo com dolo, obteve uma posição jurídica ilegal, abusiva, a qual não poderá ser exercida, sob pena de ofensa à boa-fé objetiva.
IV. Já a exceptio doli specialis consiste em espécie da exceptio doli generalis, voltada, exclusivamente a atos de caráter negocial e a atos dele decorrentes, quando verificada a presença do dolo. Assim, quando o direito obtido pela atuação dolosa consistir num negócio jurídico, estaremos diante da especial, caso contrário se falará na geral.
V. A inalegabilidade das nulidades formais consiste em situações nas quais a parte a quem a nulidade aproveita, está proibida de alegá-la, pelo fato de ter dado causa a ela, e se tratar de nulidade formal (que não diz respeito à substância do ato).
VI. O desequilíbrio no exercício jurídico se caracteriza pela significativa desproporção entre o exercício e o direito que legitima referida atuação; o conteúdo do direito não corresponde ao exercício implementado (este é excessivo). Consiste, basicamente, em uma aplicação parcial da cláusula geral do art. 187 do Código Civil de 2002 (abuso de direito).
VII/VIII. A suppressio tem o conteúdo de perda de um direito não exercido durante um lapso temporal considerável, que, por conta da inação, perde sua eficácia. A razão desta supressão é a confiança em um dado comportamento de não exercer o direito; tal confiança é tamanha, que gera expectativa para a parte contrária, não mais podendo ser exercido. A tutela da confiança gera, em contrapartida, um direito à outra parte, versante sobre a impossibilidade do exercício daquele direito. Esse novo direito, essa nova posição jurídica insurgente da inação do outro contraente, leva o nome de surrectio. O exemplo legal destas figuras pode ser visto no art. 330 do Código Civil de 2002.
IX. A Cláusula de Estoppel, de origem anglo-saxônica, grosso modo, consiste na mesma proibição de comportamento contraditório do venire, mas aplicada a tratados internacionais.
X. O Duty to mitigate the loss consiste no dever de agir de sorte a diminuir o seu próprio prejuízo. Sobre essa tese foi aprovado o Enunciado nº 169 na mesma III Jornada de Direito Civil: “princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Esta redação foi inspirada no art. 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre venda internacional de mercadorias, que ostenta a seguinte redação: “A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída”.
Exemplificando a aplicação desta figura, lembremos do caso do fazendeiro que, vendo o fogo se alastrar pela fazenda do vizinho, prestes a invadir sua propriedade, mesmo podendo evitar que isso acontecesse, nada faz, visando ulterior indenização. Tal conduta não se afina com o princípio da boa-fé objetiva, eis que ele teria o direito de evitar, ao máximo, seus prejuízos. O exemplo legal desta figura pode ser visto nos arts. 769 e 771, ambos do Código Civil de 2002.
XII. O adimplemento substancial ou “substantial performance” que teve origem na Inglaterra (século XVIII), ocorre quando a obrigação do devedor, ainda que não cumprida completamente, for tão próxima do que esperava o credor, satisfazendo-o, de modo que se tornariam injustos os efeitos de uma eventual resolução. Nas palavras de Covis do Couto e Silva, seria “um adimplemento tão próximo do resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização.” (Silva, A Obrigação como processo).
Há quem sustente que o direito brasileiro autoriza tal argumentação, conforme se verifica da interpretação conjugada do art. 475 do Código Civil - que dispõe sobre o direito de resolução em caso de inadimplemento, sem, no entanto, citar o modo de descumprimento que autoriza tal direito - com o parágrafo único do artigo 395, também do Código Civil, segundo o qual, em caso de inutilidade da prestação para o credor, este poderá resolver o contrato, com o direito de indenização por perdas e danos.
Diz-se, pois, que quando a prestação ainda tiver utilidade para o credor, mesmo não tendo sido cumprida como avençado, a resolução revelaria excessivamente abusiva, afrontando a boa-fé objetiva.
Concluindo, apenas para complementar, vale ressaltar que a adoção dos comportamentos acima explicitados redunda na inobservância dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, a qual, conforme o enunciado nº 24 da I Jornada de Direito Civil do CJF, gera responsabilidade contratual objetiva.